segunda-feira, 9 de abril de 2018

Paraíba

- Lula presidente.

Aquele Paraíba folgado gritava toda manhã, enquanto eu saía para o escritório.

Dia desses, eu estava no quiosque no Juca tomando uma água de coco, depois de fazer cooper na praia. Marquei tudo no strava, que tinha baixado no Iphone. Esse aparelho novo tem uma o dobro de memória. Cabe tudo. Eu tinha caminhado cinco quilômetros e só queria dar uma relaxada olhando o mar.
Pedi um coco e sentei pra jogar conversa fora. Juca perguntou se eu tinha visto a sacanagem que tinham feito com o Carpegiani no Flamengo. “O cara perdeu um jogo e colocaram ele pra fora. Futebol brasileiro é uma merda mesmo. Clássico é clássico. Não tem como saber quem vai ganhar”, falou enquanto me entregava um canudo. O Botafogo havia eliminado o Flamengo do campeonato carioca há algumas semanas. Tô por fora do futebol, respondi enquanto desamarrava os cadarços.
Depois de um tempo em silêncio, inevitavelmente, a gente começou a falar sobre política. Perguntei se ele estava satisfeito com o trabalho desenvolvido pelo prefeito. Eu tinha votado no sujeito e como o Juca era evangélico, suspeitei que tivesse feito o mesmo. Para a minha surpresa, ele começou a esculachar o cara, disse que não tinha nada a ver um líder religioso governar uma cidade tão grande como o Rio de Janeiro. E o pessoal que gosta de rodar a saia na beira do mar, ainda pode doutor, perguntou indignado, com gotas de suor escorrendo de sua testa. Tinha acabado de cortar mais um coco com seu facão e servir a um homem que acabara de chegar ao quiosque.
Eu desconversei. Por mim, esses macumbeiros todos poderiam morrer afogados, isso sim. Não compartilhei esse pensamento. Apesar de ser verdade, achei inapropriado. Comecei a falar sobre o juiz que estava lutando contra a corrupção. No país que a gente vive quem tenta estancar a roubalheira tem que ser reconhecido. Nem sei como esse cara ainda tá vivo, pra falar a verdade. Ele disse que político é tudo igual, falou coçando a axila, sem tirar o olho da caderneta. Mais uma vez, ficamos em silêncio durante alguns segundos.
Falei sobre o que realmente me interessava no momento. Você viu no jornal que vão prender o Lula? Juca estava enfiado até o tronco no freezer. Devia estar colocando mais um saco de coco pra gelar. Dia de sábado ele sempre vende muito, principalmente até o meio dia. Pega o pessoal da caminhada e os ciclistas. Justiça seja feita. Aquele analfabeto achou que ia se safar. Aqui é assim. Além de ladrão aquele ali é comunista. Quem quiser ser comunista vai pra Cuba, caso contrário aguente as consequências. Falei isso e dei uma grande golada. Á água de coco do Juca é a melhor do Rio.
Eu não havia percebido, mas o sujeito que tinha sido despachado por último estava sentado à mesa atrás de mim. Ouvi ele arrastando a cadeira antes de falar. Ô doutor, conta mais essa história, falou antes de soltar a fumaça do cigarro pelo nariz. Decidi compartilhar com ele algumas percepções. Falei que o último governo era muito assistencialista e populista, esse negócio de bolsa família tira a oportunidade do pessoal aprender a pescar o próprio peixe e tudo mais. O homem parecia um bom ouvinte, então fui mais longe, afirmando que cota é muito mais uma humilhação e esmola dada aos pobres do que oportunidade. Quem quer oportunidade, cria uma. Tem que investir mesmo é em educação e não em cota. O Joaquim Barbosa não chegou aonde chegou por que sentiram pena dele. Cada um faz o seu, o cara sendo preto ou branco. Cor é um negócio superficial. Quando chupei o canudo, percebi que não tinha mais água.
Lentamente, o homem dobrou o jornal e perguntou se eu já tinha estudado em uma escola pública ou se pegava lotação para chegar ao trabalho. De prontidão disse que não. Tem lugares na Europa que os políticos são obrigados a andam de transporte público e gostam. O negócio funciona. Os filhos deles são obrigados a estudar em escolas públicas. São as melhores. Isso não impede que os garotos acabem indo pra Stanford, Yale e até pro MIT. Mas aqui infelizmente o negócio é diferente. Como eu falei, o problema todo tá na educação. Ainda bem que eu tenho condições de pagar uma escola decente pros meus filhos. As escolas públicas daqui só formam traficante e maconheiro, completei.
Pedi outro coco ao Juca, interessado em saber o que o homem tinha a falar sobre aquilo tudo. Antes que eu pudesse lhe fazer um questionamento, ele perguntou o que eu achava da violência na nossa cidade. Achei interessante. Falei que obviamente ele havia de concordar que a violência no Rio de Janeiro era preocupante. Pior do tudo – melhor pra gente – era que a cidade não estava nem entre as 30 mais violentas do país. Ouvi dizer que em Fortaleza estão matando no meio da praça. O pessoal chega, atira pra todo lado e vai embora.
Aí se um policial acerta um tiro em um vagabundo pode chegar a perder o emprego, ser afastado e até perseguido. Isso é Brasil! Depois que o último governo veio com esse negócio de Direitos Humanos, a violência só aumentou. A polícia fica intimidada, os caras tem medo de perder emprego. Mas policial é gente e tem família pra sustentar. Político, que deveria defender a população, fica passando a mão em cabeça de bandido. Deveria levar pra casa, isso sim. Por mais que eu achasse um pouco inapropriado, deixei escapar a última afirmação. Bom mesmo era em 64. O cidadão trabalhador podia sair na rua com tranquilidade. Passear com a família. Tomar uma água de coco. Porra! Eu tô aqui conversando contigo, mas a qualquer momento nêgo passa aí numa moto e metralha minha cara, sem mais nem menos. Como fica minha família? Naquele tempo, só era preso quem merecia. Quem não tinha o que esconder, não tinha medo. Até a economia era diferente. 
E o senhor, o que acha disso tudo, perguntei ansioso. Ele disse que me achava um tanto quanto radical, que a educação era o caminho, mas infelizmente esse tipo de coisa não se faz da noite para o dia e que faltava muito investimento na cultura.
Cultura. Cidadão, você concorda com aquelas pornografias de incentivo a zoofilia, pedofilia e tantas outras aberrações pagãs, é por isso que tem tanto pai engravidando filha por aí, acha que aquilo é mesmo cultura, perguntei enquanto ria de nervoso. Me senti desrespeitado pra caramba. Porra! Imaginei meu filho em um ambiente desses. E tudo feito com o nosso dinheiro. Ele passou a mão na cabeça calva, olhando para o chão. Perguntou qual era meu possível candidato a presidente. Não tem possível candidato, tá decidido, olha pro outdoor que tá atrás de você, inflei o peito. Sem precisar olhar para trás, o homem disse que meu candidato mamava na teta do governo há anos, recebia até auxílio moradia enquanto morava numa casa própria e tantas outras abobrinhas. 
Percebendo que se tratava de um fanático, expliquei calmamente que era exatamente na presidência do país que ele mostraria tudo o que pode. Lutar pelo cidadão de bem e fazer com que ele tenha sua própria proteção. Confidenciei que apesar de ilegal, tenho uma pistola Glock escondido em casa, para me proteger de bandido. Me desculpe, o senhor é nascido no Rio de Janeiro, perguntei. O homem respondeu que não. Vinha do Crato e trabalhava como jornalista há mais de vinte e cinco anos. Tinha que ser paraibano, pensei enquanto balançava a cabeça afirmativamente.
AH! Tá tudo explicado. A região mais preguiçosa e que mais se beneficiou desse governo de merda foi o Nordeste, onde só tem folgado. São tão folgados que quem tem vontade de trabalhar, como o senhor, tem que vir pra cá ou pra São Paulo. O homem apagou o cigarro na mesa, olhou nos meus olhos e antes de ir embora me chamou de fascista. Imagina. Agora ninguém pode falar a verdade. Fascista é a mãe dele, aquela jumenta.
Para o meu azar, o sujeito morava no condomínio em frente ao meu. Para um nordestino, eu acho que ele tinha vencido na vida. Devia trabalhar em um desses jornais comunistas que tem aqui no Rio. Desde então, todas as manhãs, quando eu saía para pegar meu carro que ficava estacionado na calçada do condomínio, ele gritava essa merda. Lula presidente. Foi assim que descobri que ele era praticamente meu vizinho sei lá há quanto tempo.
Dei uma pesquisada e fiquei sabendo que o porteiro que fazia o noturno no condomínio do Paraíba era o Jamelão, um homem negro e forte que morava em Bangu e torcia para o Vasco. Ele já tinha trabalhado no meu condomínio e vivia conversando comigo sobre futebol. Sujeito gente fina, apesar de ignorante e favelado. O síndico do prédio deu as contas dele há mais ou menos seis meses. Disse que alguns moradores se sentiam intimidados. Compreendo esse sentimento, mas ele era trabalhador e isso é o que importa. Tratei de ir trocar uma ideia com o Jamelão, saber mais sobre a vida do sujeito. Ele me explicou que o camarada era flamenguista doente e que Crato ficava no Ceará e não na Paraíba. Tanto faz, pensei.
Depois de alguns dias conversando com o porteiro, deu pra esquematizar tudo. Ele me disse que o jornalistazinho chegava sempre tarde da noite, por volta de dez e quinze. Estava sempre sozinho e pelo menos duas vezes na semana chegava meio bêbado, fedendo a uísque. Na medida que fui perguntando, ele começou a ficar de orelha em pé e disse que não queria se envolver com coisa errada. Subornei Jamelão com quinhentos reais. Caso resolvido. Ele só tinha que abrir o portão pra mim às dez horas e fingir que não tinha me visto. Ele também ia ter que falar pro nordestino de merda que o elevador estava interditado. E assim foi feito. Como os porteiros trabalhavam por plantão, eu ia ter que esperar dois dias.
No sábado, liguei no telefone do Jamelão, pra reafirmar o acordo. Tá tudo no esquema dotô, falou sussurrando e desligou sem se despedir. Cheguei ao saguão do condomínio nove e quarenta e oito. O portão tinha sido liberado antes de eu pisar na calçada. Emburaquei na escada de incêndio. Fiquei escondido atrás da porta do térreo. Por sorte, eu tinha chegado com antecedência. Dez minutos depois, ouvi a voz grave do Jamelão. Boa noite, patrão. O elevador tá com problema. De novo? Pois é, chefe. Serviço mal feito dá nisso aí.
O homem empurrou a porta, que quase bateu em mim. Fumando e com uma pasta na mão, começou a subir os lances de escada lentamente. Esperei que ele caminhasse um pouco, para que o barulho não chegasse até a portaria. No segundo andar, o golpeei por trás, acertando o rosto. Para não sujar minhas mãos, tinha levado a chave de roda do meu carro. O homem cambaleou e assustado desferi mais um golpe. O acertei na nuca. Ele tropeçou e desceu rolando um lance das escadas. Ficou estendido no chão. Olhei para ele, de cima para baixo, antes de falar qualquer coisa. Ele respirava com dificuldade e me olhava no fundo dos olhos, sem medo, como da última vez que nos olhamos cara a cara. Ameacei outro golpe. Ele fechou os olhos. Dei uma cusparada em seu rosto e disse, o teu presidente de merda foi preso hoje. Ele riu, chorou, gorfou, o sangue escorreu por sua boca, manchando sua camisa branca. Você é mesmo um fascista de merda, teve força e coragem para falar. Me assustei com o baralho de uma porta batendo – provavelmente no terceiro andar - e saí correndo. Pulava os degraus de três em três. Passei pela portaria e o favelado me olhou desesperado.

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